Minhas excentricidades

quinta-feira, 14 de abril de 2011

incompatíveis porque semelhantes

Eu quero te comer, mas tu me mostras um sorriso meio débil como quem diz, "minha muralha é intransponível, de louco já chega eu", a questão ou a salvação, nunca sei qual das duas, é que a fome que tenho de ti que ganha voracidade exatamente na tua loucura, é a tua loucura que sobretudo quero comer, eu quero comer absolutamente todas as origens dela, teus diálogos com o Diabo, tuas discussões com Deus, quero comer tua comunhão com os Dois, eu quero comer tuas noites mal dormidas, tua provável coleção de pípulas, tenho pra mim que tu inconscientemente as combina com as cores pastéis das tuas meias, quero comer tuas manias, eu quero comer teus abandonos em família, eu quero comer até as tuas trepadas desagradáveis, desconfio que o tempo te transformou num assexuado signo, mas talvez eu tenha me precipitado duns tempos pra cá confundo ilusão com intuição, perdoe-me se eu estiver enganada, mas sinta-se à vontade de me dizer não, porque eu te perdoarei se tu me disseres um rotundo não, eu perdoarei todos teus níveis de não, até os inaudíveis, assim como perdoarei todos teus níveis de sim, até os fugazes, eu perdoarei porque a minha submissão também será uma forma de te comer, de te comer no núcleo da dor, tua ou minha ou nossa ou de nenhum dos dois, não importa, ainda assim quero comer todas as tuas chagas, físicas e espirituais, eu quero te comer à noite durante tuas caminhadas a esmo, porque de tal solidão tenho certeza, posso te ver esquisito aos olhos dos outros e aos meus olhos amor imenso, teus passos lentos, teu corpo curvado para frente, tuas arregaladas pupilas, tua quietude constante, eu quero comer todas as tuas particularidades e teus lugares-comuns, teu pescoço meio envelhecido, a brancura da tua pele que anuncia ceratose, teus braços elegantemente longos, eu passarei dias e dias em cada um dos teus dedos, farei dedicados alongamentos em cada um deles, porque tenho pra mim que tuas mãos pedem calor, por mais independentes que sejam, eu quero comer todas as linhas profundas da tua vida, marcadas nas palmas das tuas mãos, quero comer tuas salientes veias nos dorsos das mesmas, do início ao fim, eu cortarei tuas unhas minuciosamente, com todo cuidado que tu mereces ou desmereces, porque do teu asseamento tenho certeza, mas eu quero comer também todas sujeiras acumuladas no teu umbigo, tuas culpas mais condenáveis, tuas feridas costuradas com falso desprezo, eu quero comer até teu desprezo por mim, teu interessado desprezo, aliás já o como discretamente com os olhos, todavia por mais que eu valorize o olhar preciso comer também com o corpo, o limite da minha sutileza é o corpo, eu quero comer teu corpo, quero comer teu incógnito sexo, mas se tu me pedires apenas toques suaves eu abdicarei da violência que preciso de ti, eu te deixarei pedir, eu até abdicarei dos toques suaves caso nosso sexo nem carinhosamente te excite, eu irei procurar na rua outros do teu interesse, mesmo que sejam antagônicos ao meu, enquanto tu fizeres uso de tais corpos eu te esperarei na cozinha com uma xícara de café quente, eu até conversarei contigo sobre, porque eu quero comer tuas tentativas de afeto, mas também quero comer tuas reclusões, tenho pra mim que tu periodicamente precisas duma sala escura, de inúmeros livros, duma poltrona singelamente trono, de ópera na vitrola, eu quero te comer com música, mas também quero te comer em silêncio, eu quero comer teus fluxos de consciência e teus floemas de inconsciência, teu sotaque forte, todos os teus "mãs", teu estilo de pontuação, eu quero comer tua voz pausada, eu sofro de carência literária, eu quero te comer como pai e filha, eu colocarei meus pés em cima dos teus, deixarei me levar com os olhos vendados sem nada questionar, eu quero despertar o teu lado mais cruel, quero te servir de joelhos, mas se tu me quiseres apenas de pé eu abdicarei mais uma vez, eu te tratarei como rebento, eu te comerei como mãe e filho, colocarei teus pés em cima dos meus, por mais pesados que sejam, eu te levarei com todo equilíbrio que tu precisas, eu nunca te deixarei cair, a não ser que tu me peças para cair, eu te deixarei em tal estado o tempo suficiente para que escrevas um romance até a última página honesto, depois pouco a pouco te trarei de volta, para que a realidade do mundo te cause o menor susto possível, mas eu também quero comer teu susto, o teu possível e o teu impossível, eu quero te comer, porque da minha fome tenho certeza, mas tu me mostras um sorriso meio débil como quem diz, "minha muralha é intransponível, de louco já chega eu".

Isadora Krieger

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